A morte não nos fica bem
Não lido bem com a morte. Nunca lidei. Prefiro fingir que não é nada comigo e que vai passar depressa e pronto, já passou, acabou-se e a vida continua e não penso mais nisso. Tinha 9 anos quando a minha avó morreu, foi um primo mais velho que me deu a notícia. Lembro-me do sítio exacto da sala da casa dos pais dele onde estava na altura em que ele o disse e de como o ignorei completamente. Não percebia nem queria perceber, ou percebi e quis fingir que não percebia. Tinha 9 anos (o que nos dias de hoje deve corresponder a uns 6) e a minha única reacção foi ir brincar com os outros miúdos que lá estavam, não me lembro quem. Tive pena de não a ter chegado a conhecer já mais adulta (eu), de não ter aprendido a costurar como ela (nem que fosse fazer umas bainhazinhas porque em matéria de linhas e agulhas sou uma nulidade), de pura e simplesmente não ter tido mais tempo com ela. Fugi da morte dela como fujo de muitas outras, preferindo fingir que não aconteceram.
No entanto, não se pode fugir da morte e hoje, pela 4ª vez em 31 anos de vida e apenas nos últimos 5 anos, fui a um funeral. Sempre fugi deles como... passe a expressão inapropriada para a ocasião, do diabo da cruz. Outros simplesmente não calhou pelos motivos mais variados. Nenhum era de família, 3 eram de "pessoas que já se estava à espera", seja lá o que for que isso quer dizer, porque quando se trata de entes queridos nunca se está à espera nem que a pessoa tenha 100 anos e tenha passado os últimos 5 numa cama de hospital. Mas a idade não perdoa e felizmente (se é que a palavra se pode usar aqui) é a idade que continua a matar a maioria das pessoas que conheço. E se acompanhei os funerais que acompanhei não foi pelas pessoas que foram mas pelas pessoas que ficaram porque normalmente essas é que me dizem alguma (muita) coisa.
Não conheci assim muito bem a pessoa em causa mas conheci o suficiente para perceber que tinha e teve certamente a vida toda, uma personalidade muito forte. De antes quebrar que torcer. Mas do alto bem baixo dos seus 80 e poucos tinha uma lucidez como poucas e um espírito crítico e cómico não habitual para uma pessoa daquela idade. E conhecia os nomes das ruas e outras informações que tais melhor que eu, mesmo que já pouco saísse de casa. Acho que me vou lembrar dela quase pele e osso, com os olhos muito abertos, como se quisesse ver tudo ao mesmo tempo para não perder mais nenhum minuto, mas a refilar, sempre com a resposta na ponta da língua, cheia de genica mental.
Confesso que o que me fez mais confusão foi o primeiro, há uns 4/5 anos. Já nem sei bem. Ele tinha 22 anos... ou 23. Só o tinha visto uma vez mas era irmão de um grande amigo. Cheio de vida e de saúde, um "borracho". Se custa sempre, ainda custa mais quando é assim, de repente, sem avisar, apanhando todos de surpresa, sem tempo de se prepararem para a situação. Ainda para mais "na flor da idade" como costuma dizer-se. Live fast, die young and make a nice corpse podia aplicar-se aqui também, não só ao Jimmy Dean. Fez-me mesmo muita confusão. O cemitério estava cheio de miúdos e miúdas (muitas!) e tinha flores como nunca tinha visto (foi o primeiro funeral a que fui mas já tinha estado "perto" de alguns velórios). E nesse dia senti-me tão triste por todos os amigos e família, tão impotente, tão perto da realidade de que a vida é mesmo assim e um dia acaba quando menos se espera que nessa noite nem consegui dormir.
Hoje, no meio das flores secas das campas recentemente abertas e fechadas de seguida, no meio da melancolia de pedras brancas e pretas de humidade, corroídas pelo tempo, que são os nossos cemitérios, no meio das poucas dezenas de pessoas que se deram ao trabalho de acompanhar a senhora "à sua última morada", dei-me conta que um dia tudo isto acaba. Um dia vamos e ficam os outros a chorar (ou não) por nós. Um dia somos levados para baixo da terra, somos comidos pelos vermes, transformamo-nos em pó e a vida continua na terra como sempre foi antes da nossa passagem e como sempre continuará a ser.
Quando era miúda e me apercebi que nada disto iria durar para sempre fiquei a bater mal durante uns tempos. Não sei que idade tinha mas sei que a única coisa que me ocorria nesses tempos era que ia morrer e nunca mais voltar. E as outras pessoas à minha volta, os meus pais, a minha família um dia também iam desaparecer e nunca mais voltar e eu nunca mais os ia ver! E dava voltas e voltas à cabeça a tentar arranjar maneira de que as coisas não acabassem, porque não podiam acabar. E fazia-me tanta confusão não saber o depois. Era a questão mais pertinente na minha cabeça "E depois?". "E depois???" Passava horas e horas e horas a pensar nisto, e não chegava a nenhuma conclusão e aquilo deixava-me em tal estado de angústia que ficava mesmo triste por não conseguir fazer nada para mudar o rumo das coisas. Lembro-me tão bem de estar aninhada no sofá à noite à espera que o meu pai chegasse a casa e a minha cabeça fervilhava durante horas que pareciam uma eternidade à procura da resposta. Nunca a encontrei.
Entretanto a idade deu-me as ferramentas para encarar as coisas de outra forma. Agora já sei que é mesmo assim e não há nada a fazer. Já não perco noites angustiada a pensar na morte. Já a encaro como inevitável. Ainda que tenha a certeza que quando me tocar mais directamente não a vou compreender.
No entanto, não se pode fugir da morte e hoje, pela 4ª vez em 31 anos de vida e apenas nos últimos 5 anos, fui a um funeral. Sempre fugi deles como... passe a expressão inapropriada para a ocasião, do diabo da cruz. Outros simplesmente não calhou pelos motivos mais variados. Nenhum era de família, 3 eram de "pessoas que já se estava à espera", seja lá o que for que isso quer dizer, porque quando se trata de entes queridos nunca se está à espera nem que a pessoa tenha 100 anos e tenha passado os últimos 5 numa cama de hospital. Mas a idade não perdoa e felizmente (se é que a palavra se pode usar aqui) é a idade que continua a matar a maioria das pessoas que conheço. E se acompanhei os funerais que acompanhei não foi pelas pessoas que foram mas pelas pessoas que ficaram porque normalmente essas é que me dizem alguma (muita) coisa.
Não conheci assim muito bem a pessoa em causa mas conheci o suficiente para perceber que tinha e teve certamente a vida toda, uma personalidade muito forte. De antes quebrar que torcer. Mas do alto bem baixo dos seus 80 e poucos tinha uma lucidez como poucas e um espírito crítico e cómico não habitual para uma pessoa daquela idade. E conhecia os nomes das ruas e outras informações que tais melhor que eu, mesmo que já pouco saísse de casa. Acho que me vou lembrar dela quase pele e osso, com os olhos muito abertos, como se quisesse ver tudo ao mesmo tempo para não perder mais nenhum minuto, mas a refilar, sempre com a resposta na ponta da língua, cheia de genica mental.
Confesso que o que me fez mais confusão foi o primeiro, há uns 4/5 anos. Já nem sei bem. Ele tinha 22 anos... ou 23. Só o tinha visto uma vez mas era irmão de um grande amigo. Cheio de vida e de saúde, um "borracho". Se custa sempre, ainda custa mais quando é assim, de repente, sem avisar, apanhando todos de surpresa, sem tempo de se prepararem para a situação. Ainda para mais "na flor da idade" como costuma dizer-se. Live fast, die young and make a nice corpse podia aplicar-se aqui também, não só ao Jimmy Dean. Fez-me mesmo muita confusão. O cemitério estava cheio de miúdos e miúdas (muitas!) e tinha flores como nunca tinha visto (foi o primeiro funeral a que fui mas já tinha estado "perto" de alguns velórios). E nesse dia senti-me tão triste por todos os amigos e família, tão impotente, tão perto da realidade de que a vida é mesmo assim e um dia acaba quando menos se espera que nessa noite nem consegui dormir.
Hoje, no meio das flores secas das campas recentemente abertas e fechadas de seguida, no meio da melancolia de pedras brancas e pretas de humidade, corroídas pelo tempo, que são os nossos cemitérios, no meio das poucas dezenas de pessoas que se deram ao trabalho de acompanhar a senhora "à sua última morada", dei-me conta que um dia tudo isto acaba. Um dia vamos e ficam os outros a chorar (ou não) por nós. Um dia somos levados para baixo da terra, somos comidos pelos vermes, transformamo-nos em pó e a vida continua na terra como sempre foi antes da nossa passagem e como sempre continuará a ser.
Quando era miúda e me apercebi que nada disto iria durar para sempre fiquei a bater mal durante uns tempos. Não sei que idade tinha mas sei que a única coisa que me ocorria nesses tempos era que ia morrer e nunca mais voltar. E as outras pessoas à minha volta, os meus pais, a minha família um dia também iam desaparecer e nunca mais voltar e eu nunca mais os ia ver! E dava voltas e voltas à cabeça a tentar arranjar maneira de que as coisas não acabassem, porque não podiam acabar. E fazia-me tanta confusão não saber o depois. Era a questão mais pertinente na minha cabeça "E depois?". "E depois???" Passava horas e horas e horas a pensar nisto, e não chegava a nenhuma conclusão e aquilo deixava-me em tal estado de angústia que ficava mesmo triste por não conseguir fazer nada para mudar o rumo das coisas. Lembro-me tão bem de estar aninhada no sofá à noite à espera que o meu pai chegasse a casa e a minha cabeça fervilhava durante horas que pareciam uma eternidade à procura da resposta. Nunca a encontrei.
Entretanto a idade deu-me as ferramentas para encarar as coisas de outra forma. Agora já sei que é mesmo assim e não há nada a fazer. Já não perco noites angustiada a pensar na morte. Já a encaro como inevitável. Ainda que tenha a certeza que quando me tocar mais directamente não a vou compreender.
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