6.8.04

A Selva

Ao ler recentemente um post num blog vizinho que me é muito querido e ao escrever nele um pequeno comentário, dei comigo a pensar que cada vez tenho menos complexos e problemas de consciência por, a caminho de casa, quase diariamente, passar à frente da cambada de otários de quem passo à frente todos os dias. Por muito que muito boa gente se sinta indignada com o comentário e me diga invariavelmente e a espumar de raiva contra a minha "chico-espertice": "À minha frente não passavas", a resposta só pode ser "Whatever". Também nenhum deles passa por aquilo todos os dias àquela hora, essa é que é essa.

Porque a verdade é que passo mesmo quase todos os dias e é raro sequer alguém me apitar. Para começar, não infrinjo nenhuma regra de trânsito, não passo nenhum traço contínuo, não ponho nem a minha vida nem a de ninguém em perigo. E nos dias em que tenho a certeza que não o vou conseguir fazer em segurança, vou dar a voltinha da praxe a outro lado. Depois, agradeço sempre e não tenho culpa nenhuma que deixem buracos enormes de distância para o carro da frente e finalmente, continua a parecer-me que quase todos os condutores homens têm mais relutância em apitar a mulheres do que a outros homens. Chamem-lhe cavalheirismo ou simples parvoíce de homens que babam por tudo o que é rabo de saia ainda que não me consigam ver o dito.

A verdade é que não tenho pena nenhuma dos referidos otários. Porque não faço ideia se não terá sido algum desses que há dias jogou o carro para cima de mim passando um traço contínuo e quando eu me desviei e apitei para lhe chamar a atenção, ainda refilou e gesticulou por cima (estiquei-lhe imediatamente the finger, espero que a minha criança não tenha dado por isso. Mental note: quando ele nascer vou ter de me conter nestes gestos).

Ou se não será um daqueles atrasos de vida que obstruem as vias todas deste país causando filas intermináveis com a sua azelhice própria de quem nunca devia ter passado num exame de condução de bicicleta, quanto mais de automóvel. Ou se porventura não será nenhum daqueles que fazem marcha-atrás em plena auto-estrada por terem falhado a saída pondo a causa a vida de dezenas de pessoas, e muitas vezes a minha que já assisti a cenas deste género demasiadas vezes.

Ou os idiotas que bebem demais e matam 3 ou 4 que não tinham culpa nenhuma nem fizeram nada de mal a não ser terem tido o azar de estar no sítio errado à hora errada. Ou os que não páram nos semáforos vermelhos correndo o risco de estragar a vida deles e dos desgraçados que se cruzarem com eles no caminho. Ou os que estacionam o carro a ocupar dois lugares de estacionamento nos centros comerciais, supermercados e afins porque dá muito trabalho cumprir as marcas no chão e é bem mais prático atravessar o carro e o próximo que se lixe e que dê mais voltas a procurar lugar.

Ou os que fazem ultrapassagens rasantes para mostrar que o carro deles é melhor e mais potente que o carro do vizinho. Ou os cromos que fazem corridas em vias públicas a 250km/h mais uma vez arriscando a vida de toda a gente que com eles se cruza pelo caminho. Ou os supra-sumos da estupidez que conseguem não só conduzir como fumar e falar ao telemóvel, tudo ao mesmo tempo, só podem ser extra-terrestres para terem 3 mãos! Ou ainda os que deitam toda a espécie de lixo pela janela fora como se a via pública fosse um gigante caixote do lixo e não pudessem manter o papelinho ou garrafa de água dentro do carro até chegarem ao lixo ou ecoponto mais próximo (ecoponto, qual ecoponto, nenhum destes vândalos deve sequer saber o que isso é).

E porque tenho a certeza que todos aqueles que deixo para trás fazem uma ou mais destas asneiras bem mais graves, várias vezes durante a sua vida, e porque são tudo coisas que eu não faço, além do que efectivamente faço não arriscar a vida de ninguém, não tenho nem pena, nem complexos, nem problemas de consciência, nem remorsos de passar à frente de uma longa fila de otários. Nem vou deixar de o fazer.

Se o trânsito é uma selva, prefiro ser leão.