29.7.04

"Raisparta" a responsabilidade

Estão a ver a caricatura que se faz dos funcionários públicos, que passam o dia a olhar para o ar a contar moscas e a verificar o trabalho do colega que por sua vez veio com visto de outro colega que por sua vez já foi carimbado por outro colega que por sua vez foi fotocopiado por outro colega e que às 5 para as 5 já têm a pastinha arrumada e olham hipnotizados para os ponteiros do relógio tic tac tic tac, quais alunos da secundária à espera do "toque"?

Pois é, não tenho a menor vocação para isto. Ainda por cima trabalho numa empresa onde 99% das pessoas tem essa vocação. Os que aproveitam o dia para efectivamente trabalhar ainda vá, o que chateia mesmo são os outros que não fazem nada e ainda são capazes de se queixar do que ganham (que na minha muito humilde opinião pessoal já é demais para o pouco que fazem). Ainda se não se queixassem era como o outro, agora não fazer a ponta de um corno o dia inteiro e refilar por cima, dá-me cá uns calores.  Detesto gente preguiçosa, essa é a verdade. Que se encostam pelos cantos e que acham que nasceram para ser lordes e não fazer nada. E depois quando digo que continuava a trabalhar se ganhasse o totoloto chamam-me maluca. Mas a verdade é que só me sinto bem quando estou a ser útil e produtiva e não era capaz de viver de outra forma.

Mas mesmo com os exemplos à volta, não há maneira de me deixar contagiar. Não sou capaz de me sentir bem e de consciência tranquila se não sair daqui todos os dias com a noção do dever cumprido e do trabalho bem feito (bolas que esta noite até sonhei com a maldita base de dados que acabei agora mesmo de conseguir terminar). Burra, burra, burra é o que é. Acho que deve ser defeito de família porque somos todos assim. Mesmo a única funcionária pública não é capaz de ser funcionária pública na caricaturizada acepção da palavra. E todos os dias trabalha bem mais horas do que os colegas. Porquê? Porque também não consegue sair de lá sem a noção de que deu o seu melhor e fez tudo o que podia fazer para que tudo corresse bem nesse dia (é por isso que me dá cá uma raiva quando as pessoas generalizam para se queixarem dos médicos que não lhes ligam nenhuma nas consultas! Aquela liga-lhes e é demais.)

Mas vou fazer o quê? Está-me no sangue e por mais que pense que vou fazer o mesmo que todos, não consigo. Sou incapaz de deixar coisas para amanhã estando cheia de trabalho só porque já são 6 da tarde. Tenho os meus momentos de "desopilanço", como este mas há dias que nem tempo para isso tenho. Que droga. Não haverá uns comprimidos que se tomem para se ficar insensível e imune ao trabalho e ao dever e à consciência e à responsabilidade e empenho que me auto-imponho? Ainda por cima quando isso raramente é reconhecido e ainda que reconhecido mais raramente ainda recompensado. A parte estúpida é que nem sequer é pela recompensa, é que não sou mesmo capaz de ser de outra maneira. E gostava de ser. De chegar a hora e esquecer o resto. Não sou ambiciosa, não quero ganhar fortunas, não quero ser directora de coisa nenhuma, nem sequer me considero workaholic (está bem escrito??) mas este sentido de responsabilidade a sério que me irrita. Se não gostasse do que faço acho que o caso seria totalmente diferente e não me daria ao trabalho... E o pior é que neste momento não me consigo sequer a imaginar a ser de outra forma. Quem sabe daqui a uns meses. Mas mesmo assim, tenho muitas dúvidas.