O silêncio
Não. Tomo Sokota, o primeiro a chegar junto ao amigo, a tocar-lhe, o primeiro a tentar salvar-lhe a vida, naquele relvado, olha em frente, com a mesma expressão que milhões de pessoas viram pelas câmaras de televisão: lábios levemente abertos, olhos muito vivos, cravados na bandeira húngara que vai desaparecendo ao ritmo audível - doloroso, no meio deste silêncio absoluto - das pás a revolver a terra. Parece imperturbável, mantém-se imóvel até ao fim. E então uma grossa lágrima escorre-lhe pela face esquerda. Tomo não a estanca, nem esboça um movimento para a limpar, deixa que ela gele pelos cinco ou seis graus negativos de Györ, a cidade onde o companheiro cresceu para a vida e para o futebol. As pás já pararam, dúzias de coroas de flores começam a cobrir a campa. Regressa o silêncio.
Adrienn nunca se separa da imagem do noivo. Abraça a sua fotografia desde que o avião da TAP fretado pelo Benfica, cheio com 152 pessoas (família, amigos, toda a equipa, jornalistas), aterra em Budapeste, perto do meio-dia, até chegar ao último destino, duas horas depois - com uma breve passagem por Tatabánya, onde o futebolista nasceu. Durante os duzentos metros que separam a igreja da morada final, a sua imagem é acarinhada, ao de leve, pelas mãos da namorada, como se a frieza do papel permitisse acariciar-lhe os cabelos loiros.
Adrienn e Anikó, a mãe que perdeu um filho, amparam-se enquanto seguem o carro funerário, rodeadas por centenas, provavelmente milhares, de habitantes de Györ. Atrás seguem algumas figuras do desporto e da política: Hermínio Loureiro, secretário de Estado da Juventude e do Desporto, Fernando Seara, presidente da Câmara de Sintra, os empresários José Veiga e Alexandre Pinto da Costa, Lothar Matthäus, seleccionador da Hungria, e Eusébio, o símbolo benfiquista que fez 62 anos no dia mais infeliz do seu clube.
Minutos antes, os amigos e a população, solenemente silenciosa, tinham ouvido os discursos do ministro do Desporto húngaro, de Urban Florian, jogador da selecção magiar, e de Luís Filipe Vieira, presidente do Benfica, palavras traduzidas sempre nas duas línguas. Só uma voz feminina, que principiou e conduziu a cerimónia, não teve tradução. Não era preciso. A entoação de dor é universal, e cada colega, cada amigo português, interpretava as palavras estranhas à sua maneira.
No fim, ouve-se uma música pop, do húngaro Nagy Lajos, «Kozeli Helyeken». Era uma das suas preferidas, que até havia interpretado em dueto, na última noite de quarta-feira que passou com o amigo Gabor, atleta do Santa Clara. Uma canção triste, que fala sobre a vida e a morte. Tomo Sokota não o sabe, nem nenhum dos seus companheiros. Mas todos ouviram o mesmo nome a ser repetido naquela voz: Miki.
Luís Ribeiro 29 Jan. 2004*
*Luís Ribeiro é repórter da VISÃO